Aponte para o futuro

Agora que começamos a caminhada de volta à pobreza, cercada de miséria, crime e escravidão, convém nos prepararmos para o futuro. É muito recomendável treinarmos para atravessar a famigerada ponte que talvez nos leve até lá. Em primeiro lugar é preciso esquecer que já tivemos um país e que fazíamos parte de uma nação que nos dava motivos para nos orgulharmos – 'isto não nos pertence mais', pois nos foi roubado e os ladrões não vão devolver. E não importa o quanto peçamos, o quanto os xinguemos, ou o quanto esperemos. Simplesmente não retornará mais para nós, ou para nossos filhos.

Exercitemos o espírito e a vontade, bens imateriais, pois virão a nos faltar os bens materiais e virá a miséria. Desprendamo-nos, desapeguemos, pois logo seremos como andarilhos sem posses e, por isso mesmo e também pelos assaltos, nos convirá que nossas mochilas sejam leves. Suponho.

Confessemos que já estávamos todos cansados daquela faina de comprar coisas e, em seguida, trabalhar mais para pagar as coisas e comprar mais coisas e fazer mais passeios e cursos e ir a teatros e shows. E fazer tudo isso cada vez com mais velocidade e ansiedade e medo, pois suspeitávamos que iriam tirar de nós. Logo trabalharemos pelo prato de comida e a vida nos parecerá parada, simples e repetitiva, como aquele meio pesadelo do qual não conseguimos despertar. E faremos grandes elucubrações e muitos esforços para conseguir algumas migalhas – oh, as migalhas serão muito disputadas e valorizadas, muitos morrerão por elas!

Que a leveza do corpo nos ajude a atingir a leveza de espírito, pois teremos tão pouco o que comer quanto ocupações que não sejam trabalho. Viagens, assim como todo o resto, serão a cada ano mais difíceis de fazer, mesmo as de casa para o trabalho e vice-versa – gasolina cara, ônibus lotados, e ir a pé, de skate ou bicicleta será muito mais arriscado, por causa dos assaltos.

Mas teremos algumas coisas boas: a necessidade de cultivarmos hortas, para conseguirmos melhorar o feijão com arroz; diminuiremos drasticamente nosso consumo de carne, voltaremos a falar diretamente uns com os outros, já que grande parte de nós não conseguirá pagar a internet. Aprenderemos a tomar mais sol, enquanto tentamos viver de luz. Deveremos aprender também a tomar água da torneira e a cozinhar em casa. Quando faltar gás, que será muito difícil de repor pelo preço exorbitante, será o momento mais adequado de atacarmos a horta e desenvolvermos o salutar habito de comer legumes, frutas e folhas cruas. Deveremos redescobrir a suprema graça da respiração e o requinte do banho frio, e do quarto e da casa quentes. O ventilador voltará com tudo, e os calções de nylon com sunga, os chinelos de dedo, os pés descalços. E não nos irritaremos demais com isso, ao lembrarmos que os chineses chegaram a ter que comer cachorros e insetos.

Descobriremos que tomamos a paulada, a cacetada, os golpes, para sermos mais e de mais variadas formas usados e abusados pelos sequestradores e para esquecer aquelas veleidades e frescuras cidadãs de 20 centavos, de direito isso, direito aquilo, igualdade não sei o quê, ética não sei das quantas, etc. E já nem lembraremos daquela ilusão, que tivemos, de que éramos algo e havia interessados e respeito por nossa opinião. Esse esquecimento será de valia para nós, mas ainda assim o consumo e o preço dos analgésicos legais e ilegais irá a alturas inatingíveis pela ralé que nos tornaremos.

A arte talvez não nos salve, mas nos ajudará a suportar melhor as dores e dissabores – poderemos sublimá-los, como fazíamos há uns vinte anos, e isso nos dará até alguns ares de elegância na decadência vertiginosa.

Nacionalismo agora tornou-se totalmente ridículo, como causa e como interesse. Só nos cabe a partir do imenso galo na testa e do final da tonteira proclamar a defesa do internacionalismo, na esperança de que os estrangeiros que mandarem aqui nos poupem e eventualmente até simpatizem conosco e nos concedam algumas preciosas migalhas.

Os brasileiros (a partir de agora, internacionalistas) que fizermos jus à fama de comunicativos e calorosos poderemos nos dedicar à escravidão light, servindo aos senhores e senhoras como garçons, massagistas, acompanhantes, cuidadores de cachorros, penteadores de macacos, papagaios de privatas, cachorros de madame, assessores sexuais, personal tupiniquins, etc. E note a vantagem do internacionalismo: poderemos nos candidatar a prestar esses serviços no estrangeiro sempre que nossos amos viajarem, convencendo-os de que lá não encontrarão tanta submissão, em tão rasa altura, por tão baixo preço. A quem seria mais confortável pisarem em cima? Caso isso não funcione podemos sempre fugir da senzala nativa para sermos escravos mercenários no estrangeiro – dizem que pagam mais.

Os outros cômico-patriotas, digo, compatriotas, que não forem muito bons nessas habilidades servis-recreacionais, farão o trabalho mais duro e receberão a pior ração, mas poderão exercitar os seus músculos, testar a sua resistência corpórea e mental e anotar os resultados para eventual uso das gerações futuras, provavelmente pela indústria farmacêutica-agroalimentar-armamentista.

Ah, tens curso superior e pós-graduação?! Vão te chamar de doutor lá na prisão.

Pessoalmente, na idade pré-provecta em que me encontro (falta pouco para me tornar um terceiro-idoso), estou com dificuldades para imaginar que serviços poderei oferecer aos novos amos, já que a aposentadoria, babaus, né… Não gostaria de ter que colocar pino de acionamento em bombas, transportar gás para os fornos, recrutar 'voluntários' para testes com agrotóxicos e coisas do gênero. Tentarei antes o trabalho nas minas, no porão dos navios ou em algum outro tipo de prisão que, por ora, me parece melhor que trabalhar diretamente para a indústria da morte.

Não há problema em viver mal e com pouco desde que se sonhe bem e bastante, não é mesmo?
O choro e o sonho são livres. Morrer também não está fora de cogitação, evidentemente, mas eu ainda prefiro sonhar. Sonhar os melhores sonhos e aí, sim, partir, já que vivê-los está definitivamente fora da ordem dos dias.








Comentários

Anônimo disse…
Texto forte, de grande expressividade! Deu-me saudade do Fausto, Jean...