Escrever é uma cachacinha boa.

(Capítulo 5 do relato da viagem à Bahia)

Cachacinha boa como conversa de amigos. Toma-se aos golinhos, saboreando o adormecimento das papilas, preparando-nos para a percepção do que está um pouco acima. Faz com que os sedimentos do percebido sejam remexidos, ganhem visibilidade, fluam em uma aspiral descendente, ganhem forma, importância, materialidade. Escrever é folhear os planos superpostos dos registros que se acumularam na mente como páginas de um livro, onde juntamos coisas da página 20 com coisas da 1235 e da 4807 e daí resulta o que passa a ser a página 1, que logo mais será a 330. Escrever é tornar esses conteúdos acessíveis, inicialmente para nós mesmos e a seguir para quem tenha a possibilidade e a curiosidade de saborear esse trago, esse drinque (tink, tink!) que preparamos. Abanquem-se e bebam comigo.

Estávamos 5 homens sentados dentro de uma sala fechada e com um janelão de vidro grosso por onde não passa barulho. Do outro lado desse vidro, pessoas mexiam em aparelhos eletrônicos com ponteiros, luzes, fones e de vez em quando nos olhavam, faziam sinais batutas, num concerto maestrino. Nós, os 5 homens naquela sala estávamos no topo do mundo e o que falávamos era ouvido a distâncias somente imagináveis, pois nunca se sabe onde estão as pessoas que escutam uma rádio.

Três desses homens me entrevistavam sobre, vejam só, escritura, gosto, beleza, feituras e leituras do escrever, logo depois de chatear monos, esperançar monos, pentear monos, com o previsível papo sobre política com o futuro mais-que-prefeito, o próximo administrador de um universo-aldeia que eu não conhecia e conhecia, pois todas as aldeias têm coisas comuns e inusitadas, que são as obras e cultura das pessoas que as compõem. Nos abancamos para essa roda de trago ao meio-dia e falamos de fazeres, prazeres, aprendizados, alegorias, e da humanidade inteira que há em cada um de nós, pois falamos de poesia. Encompridamos a conversa, afinamos e tecemos linhas, de formas que fizemos um bom enredo, de rede, uma rede para o sossego da tarde para a festa da pescaria, onde pegamos uns pintados graúdos, uma fritada de lambaris, uns cascudos... E me senti feliz, com muita justeza pela boa acolhida, em companhia daqueles profissionais de tarrafear conversa fora, pescadores de muitos ouvidos.

Estávamos 5, como já disse - eu, Conselheiro Galvão, Nilton Batista, Arnaldo Santana e José Carlos Bulcão, o Zé de Bulca - mas éramos mil, dez mil, milhões talvez. Éramos todos os que nos ouviam e muitos mais, e mais uns tantos, inclusive aqueles que ao longo do tempo resultaram em nós, que ali, despreocupadamente e à vontade, inventávamos sentidos, achávamos ciências, enquanto desenhávamos no pó de que somos feitos, um tantinho de existência.

Da nossa pescaria nas ondas elétricas e magnéticas repartimos os peixes com despreendida alegria e ainda demos um livro à primeira ouvinte baiana que disse o nome de um escritor gaúcho. Assim deixamos mais uma espera, para saciar talvez alguém que passe desprevenido ali por aquelas bandas d’águas da Bahia valenciana.

Logo à noite, meus amigos, eu teria que falar na faculdade de letras, mas a história desta outra alegria, inédita para este gaudério, ficará para outro dia.

Para acompanhar a seqüência até este quinto relato da viagem que fiz à Bahia, leia também o primeiro, segundo , o terceiro e o quarto relatos.

Comentários

Jens disse…
Pô, deu vontade de estar sentado à mesa com a turma.
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Gostosa de ler a tua descrição sobre o ato de escrever.
Um abraço.