A caminho de Valença


Ler é melhor que escrever e às vezes não ler é melhor que ler. Agora, portanto, faço a terceira melhor coisa neste ramo e dou a vocês a oportunidade de fazer as duas primeiras. E ainda esta mesma terceira, nos comentários.

Em Ilhéus, encerradas as atividades profissionais, em vez de pegar o avião de volta a Porto Alegre, entrei num táxi e disse: - siga à rodoviária. Paguei R$ 22,00 para rodar 3 ou 4 km, em bandeira 2, da qual reclamei e o motorista disse ter permissão da prefeitura para assaltar no aeroporto. O assaltante era simpático e pró-ativo e tentou novo golpe: me vender uma corrida à cidade vizinha, dizendo que para Valença não havia ônibus saindo de Ilhéus naquele dia, mas somente de Itabuna dali a uma hora. Historinha que não comprei, pois me informara com a companhia de ônibus pouco antes. Contou-me ainda de como ele achava maravilhosa a vitória de seu candidato a prefeito, do PSDB, por ser natural de Ilhéus, e que não entendia porque os baianos elegeram um carioca e petista para governador. Como ele não me mostrara nenhuma arma ainda, resolvi revidar esta e disse: - pois é, esse negócio de eleger gente de fora é complicado, lá no Rio Grande do Sul elegeram uma paulista do PSDB e nunca tinha se visto tanta roubalheira e incompetência juntas. Os motoristas de táxi a adoram, pois a rádio que eles escutam o dia inteiro diz que ela é maravilhosa. Ao descer do carro (de assaltos) de praça agradeci, acho que por ter saído com algum ainda no bolso.

O expresso Águia Branca saiu da rodoviária de Ilhéus em direção a Bom Despacho, passando por Valença, às 14:25, dez minutos depois do horário, pois o fiscal foi bater um papinho com a vendedora de passagens, no que aproveitei para pedir se ele poderia esperar eu ir ao caixa eletrônico, com o que ele concordou, desde que não demorasse muito. 50 minutos depois encostamos na rodoviária de Itabuna, onde embarcam os turistas que se informam com o assaltaxista do aeroporto de Ilhéus, coincidentemente PSDBista. Por sinal embarcaram ali três loiras lindas falando inglês. Subiu também muita gente do lugar. Uma nativa gordinha, pra lá de balzaquiana tentou tomar o meu assento à janela, indevidamente, e sem conseguir sentou ao meu lado, no banco do corredor.

Em Ubaitaba desce a gordinha e sobe um nativo negro, pele bem escura, já meio goleado e procurando o assento número dois lá no onze, pelo jeito da figura porque no banco ao lado do onze tinha uma guria bonitinha, que lhe indicou o banco 2, ao lado do meu. Francisco (antes de ele descer perguntei seu nome) é do tipo que pensa em voz alta. Sentou e já começou a pensar. Pediu uma cerveja a um ambulante pela janela, no que o acompanhei, então pensou que tinha ido a Ilhéus de carona na boléia de um caminhão vender banana e coco, que as bananas eram suas e os cocos de outro, que saíra antes de o outro chegar mas estava com o dinheiro dele no envelope (me mostrou o envelope). Que vendeu todas as suas bananas e deixou os cocos que não conseguiu vender com não sei quem, que a Bahia já foi boa para trabalhar, não é mais. Durante muito tempo a viagem foi enriquecida com o pensamento narrativo, freqüentemente circular, de Francisco, que pensou que vai buscar sua parte da herança, que está com uma irmã, e com uns 3, 4 mil, comprar uma terra no Pará, onde já trabalhou criando gado para uma fazendeira lemoona daquela nação que tem lá pro sul, como é mesmo?, gaúcha. Gente muito boa, ele entrava na cozinha para se servir, se quisesse comer tinha que ir se servir, era entrar e se servir. Foi buscar a mulher e a filha para levar ao Pará, mas ela não quis, agora ele vai falar com uma cantora de música evangélica e se ela quiser ir com ele, até pode ser que formem uma dupla - porque ele toca violão, sim, mas não música evangélica - que ele não fica sem mulher. Nas eleições votou nas duas mulheres, mulher é melhor. Ele teve um sonho que a mulher ia ganhar e falou pra ela e pra todos que vinham perguntar. E muitos iam lhe perguntar se ele tinha sonhado mesmo que ela ia ganhar. Votei nas duas mulheres e as duas ganharam, como no meu sonho. Onde tiver mulher eu to no meio, mas pra trabalhar, pra trabalhar. Francisco tem medo fascínio de onça no Pará, mas na sua terra, que vai comprar com a herança, não vai deixar matar onça, só se ela quiser comê-lo, aí ele mata a onça ou ela o mata. A Bahia já foi boa pra trabalhar, não é mais.

Francisco já queria ir com meu par de ouvidos para Valença, conhecer a cidade, trabalhar por lá, bastava eu ter dito que Valença é um lugar bonito que ele iria. Foi com relutância que desceu em sua cidadezinha, Camamu, ou Ituberá, no meio das grotas de perto do litoral da Bahia. E então tive um pensamento triste: que uma vida de poucas venturas mais um monte de cachaça pode ser a onça que comerá Francisco. Fica com tua Fé, Francisco, e com tua cantora de música evangélica, que aprenderá também a cantar as músicas que tu gostas. Que ninguém roube tua herança mais feliz, que te dará uma tropilha de gado ou um roçado no Pará e uma onça amigada que irá comer em tua mão. Vai, Francisco, povoar com tua alegria este Brasil criança, que precisa tanto de ti.

Na rodoviária de Valença, 190 quilômetros distante de Ilhéus, às 7 da noite, Araken, com sua cabeça e cavanhaque brancos de tanto Brasil e América do Sul, e Euzedir, sua mulher, me esperavam na plataforma.

Comentários

Anônimo disse…
Bonito relato, Jean. Aliás, as fotos também, com uma proeza: uma foto bonita feita do avião.
Renato Couto disse…
Mas uma prova, de esse Brasil não é só litoral, não é só zona sul...Abraços.
Oi, Jean.
Respondi seu comentário no texto que fiz sobre o Fausto Woolf, em meu blog.
Desculpe a demora, mas é que não estava conferindo os textos antigos nos últimos dias.
Abraços
JÚLIO GARCIA disse…
Maravilhosa postagem, Jean. Pura poesia, irreverência e sensibilidade. Andava meio sem tempo, como sabes, mas hoje consegui ler teu blog. Grande abraço!