Um Lobo no Porto

Um Lobo no Porto

(I – O início do dia)

Quinta-feira, oito da manhã, sou acordado pelo telefone. Na cama eu, Nair minha mulher e Viviane minha filha caçula de 1 ano e três meses.

O quarto é na verdade um galpão que ia ser transformado em casa e teve as obras interrompidas indefinidamente por falta de verbas. Estávamos às escuras e eu saí da cama cambaleando entre as caixas espalhadas pelo chão – uma obra de arte pó-moderna é o que eu tenho em casa, uma "instalação" que poderia ser chamada de A Mudança Imutável. Atendo o telefone e é o Comandante Fausto Wolff:
– Bom dia, Scharlau. Já tomou café?

– Bom dia, Comandante! Não, não tomei. (Olhei para o relógio, confirmando que estavam apenas em oito as horas do dia o que me encorajou a afrontá-las:) – estou acordando agora.

– Então venha até o Grande Hotel tomar café comigo.

Deixem-me explicar-lhes o seguinte: não sei como é com vocês, mas comigo acordar é em etapas. Primeiro acordam os neurônios indispensáveis, o neurônio que ouve, o que vê, o que fala, o da perna direita, o da perna esquerda, assim mesmo todos se espreguiçando e tropeçando nas coisas. O que transmite a mensagem, o que passa a limpo, o que entende e o responsável pelas providências cabíveis ficam todos dormindo até às dez pelo menos.
– Claro, Comandante, é o tempo de pegar o avião e estou ai no Rio. Onde é que fica esse hotel? Disse para fazer graça, pois pareceu aos meus neurônios sonolentos que ele brincava.

– Eu estou em Porto Alegre, o Grande Hotel fica na esquina da Caldas Júnior com a Riachuelo. Em quanto tempo chegas aqui?

O Homem não é de perder tempo e rápido assim colocou-me numa enrascada. Os neurônios que já tinham levantado tiveram que correr até o alojamento para chutar os dorminhocos. Explico-me de novo. Ocorre que eu moro sozinho, pois que é no galpão que já mencionei. Mulher e filha estavam de visita. Eu mesmo sou o encarregado de todas as lides do residencial galponeiro - lavar, estender, recolher e passar a minha roupa, entre tantas outras tarefas, como regar de manhã o chão batido para não levantar poeira com a lida e coisas e tais. Pois era justo o dia de lavar a roupa e estavam elas todas sujas. Eu trabalho instalando antenas DIRECTV, então quando eu digo que as roupas estavam sujas é porque elas estavam SUJAS. E eu não iria conhecê-lo de roupa suja, para cúmulo ainda num "Grande Hotel". Não podia também dizer-lhe, pelo ridículo da situação, que era isto que me impedia. Pois bem, desconversei.)
– Aqui em Porto Alegre?! Mas que ótimo! Que bom motivo o traz?

– Estou aqui para o enterro da minha mãe. (Para poupar-me das estapafúrdias desculpas, pêsames e explicaçõezinhas decorativas, ele continuou) Ela morava em Santa Catarina, mas queria ser enterrada ao lado do meu pai, aqui.

Não consegui dizer nem um "que droga", apenas balbuciei um âhñn em tom lamentoso de quem se dá conta de que toda uma situação que parecia uma coisa alegre é outra e triste, embora do meu ponto de vista não deixasse de ser alegre pois ele estava aqui e tinha me ligado para tomarmos café juntos.
– Desculpe Comandante, mas eu estou cuidando da minha filha.

– Traga-a junto. Que idade ela tem?
– Um ano e três meses.
– Não, então não dá mesmo. Um ano não dá, é um bebê. Scharlau, o enterro será às 11 e depois eu e a Mônica vamos almoçar com a família que vai estar quase toda aqui. Então lá pelas três, quatro horas você me liga. Quero conhecer o redator-chefe do meu sítio.

– Claro, Comandante. Quem mal pode esperar pela honra sou eu. Chegaram a Porto hoje?

– Chegamos ontem à noite. Lá pelas onze saímos para jantar e dar uma olhada na cidade e não encontramos ninguém na rua. Não encontramos nem onde jantar. Os gaúchos estão mudados mesmo. Nos meus tempos por aqui o pessoal se encontrava era à noite e de manhã quem ficava em casa cuidando dos bebês eram as mulheres.

– Rá, ha, ha – tive que rir divertidamente amarelo no escuro, embora soubesse que não era bem assim. Apenas faltou-lhe alguém que conhecesse o atual mapa da cidade, onde dorme-se cada vez mais cedo é verdade, mas ainda se encontra à noite alguns plantonistas da Boêmia e do Regalo. Faltou-lhe, e mais a mim, ter avisado que viria. Mas a surpresa, como a vida, é mesmo assim, chega sempre sem alarde. Só a morte se anuncia o tempo todo e assim mesmo dificilmente é esperada.

– Até à tarde, Scharlau.
– Tá legal. Obrigado. Eu ligo aí pelas 3, 4 horas. Um abraço.


II - A MORTE

Desde que nascemos a morte é uma promessa. Disfarçadamente nos aguarda próxima à mesa onde tomamos nosso café da manhã. Quando saimos de casa, se olharmos por cima do ombro ou pelo espelho retrovisor a veremos meio escondida entre os outros, lá num cantinho, para em seguida sumir e dali a pouco aparecer mais à direita. O seu olhar batendo sempre em nossas costas, como o dedo de um cobrador. Ao meio-dia, no almoço, ela já senta-se por alguns minutos à mesa, pede que lhe passemos o molho e nos dá a certeza de que não é uma invenção como Papai Noel.

Corremos ao trabalho e pensamos tê-la esquecido. Logo ela vem nos trazer um envelope que não havíamos pedido. Ao olhar sua mão lembramos de como ela tem estado permanentemente na televisão. Educadamente agradecemos como se quiséssemos aquele envelope que não pedimos. Há mesmo gratidão em nosso agradecer mas é por ela ter vindo somente trazer o envelope. Por não ter sido ainda a hora prometida.

Dentro do envelope há um convite para enterro. Na capa do convite a foto de um caixão, muitas coroas e flores, a tampa escorada ao fundo. Meia dúzia de pessoas olham nervosas para dentro do caixão que está vazio. Dentro do convite está a nossa foto impressa. Olhamos rápido para a porta e entorno – ela não está, estamos sós na sala. Olhamos novamente o convite e abaixo da foto está o nome de um amigo, e a foto, não, não éramos nós, é a foto do amigo, mas há algo diferente que nos enganou.

Saímos para tomar um cafezinho, uma cachaça. Já há várias delas circulando pelos corredores. Só uma nos olha. Termina o expediente e vamos para casa. O ônibus está cheio delas. Ficamos com medo e pegamos um táxi. A mão na direção do táxi. Temos a impressão de que aquela mão.

Chegamos em casa. A morte nos abre a porta e diz que chegamos cedo. Alcança-nos a toalha para o banho. Ao sairmos a mesa está posta e ela, sentada à cabeceira, convida-nos a jantar. Jantamos silenciosamente com os olhos postos na mesa. Um pouco antes de nós ela levanta-se e convida-nos a ir até a sala, olhar na tv o noticiário e depois um filme. No noticiário falam muito dela e no filme ela está ótima. Ela levanta-se e vai para o quarto: – vem, amor.

(Segue. Em breve neste sítio – o sítio do lobo.)

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