Minha luta

Eu sei, eu sei, o título é horrível, mas é justamente para lhes demonstrar o que quero dizer. Querem que eu escreva como um inglês, como um francês, um alemão, no mínimo como um norte-americano. Mas se eu ganho muito menos que qualquer um deles (e para escrever, nada), se tenho mais trabalho e menos dentes que eles, se minha casa não é tão bela nem confortável, se as minhas contas são muito mais difíceis de pagar, se a minha nação é vítima e a deles criminosa, como poderia eu escrever como eles?

Como poderia falar sem ira e sem mágoa, se todos os dias ouço o estapafúrdio caminhão do silêncio recolhendo corpos e crianças mortas ainda vivas das calçadas em frente às pobres casas e sei que logo adiante recolhem-nas do chão de barro e pó das ruas sem pavimento, sem beleza, sem direção, onde exibem-se vergonhas desgraçadas e purulentas grudadas nas costas dos que passam todos os dias por lá e que logo serão recolhidos e desaparecerão no poço sem fundo das histórias que nunca são contadas, e quando contadas nunca ouvidas, se ouvidas não são entendidas, porque são contadas na língua dos mortos desde sempre, todos condenados por sentenças que dispensam qualquer culpa e não admitem recursos. Se não posso ser um escritor inglês, francês, alemão, norte-americano, pelo menos que escreva como um cachorro deles, que imite, deite, role e finja de morto, for God sick! É o que me dizem os academicizados naquelas suas letras góticas. Seja agradável, seja elegante, seja sofisticado, perceba esta nova ótica e as portas do mundo abrir-se-ão para ti. Ó, ó! Aqui! Agora vai, busca! Nós lutamos desde antes de nascer. Lutamos para livrar-nos do aborto e subsistir à desnutrição de nossas mães, à violência dos pais e dos outros que estão por perto, perto demais, sempre. Lutamos para sobreviver ao parto, às bactérias, vírus, amebas, traficantes de bebês e órgãos, infecções hospitalares, pocilgares domésticas e sociais. Lutamos contra o desamor. Lutamos contra baratas, ratos, mosquitos, friagem que dá dor de ouvido e cárie que dá dor de dente. Lutamos contra o desespero, a tristeza, a solidão, o egoísmo, a dor de cotovelo, a burrice e os aproveitadores. Lutamos contra coliformes fecais, asa, mau hálito, chulé, gripe, sífilis, aids, câncer, cirrose, chatice, estresse e tique nervoso. Contra o sorriso banguela armamos pivô, ponte, prótese e dentadura. Ou então deixamos de sorrir. Lutamos contra os vícios, que querem ser nossos para que sejamos todos deles. Lutamos contra o ladrão, o mentiroso, o traidor e a mulher ou o homem que nos domina e tenta. Lutamos contra a fome, a sede, a cegueira, a surdez e o manicômio. Lutamos contra a culpa, o medo, o tédio, o rancor, a idiotice e estupidamente lutamos contra nós mesmos, um contra si e uns contra outros. Não há remédio possível nem final antes da morte. A vida é luta. Os que desistem ou perdem, e isto sempre acontecerá em algum momento, serão recolhidos amanhã de manhã, ou à noite por aquele caminhão de silêncio. É uma metáfora urbana, eu sei, mas tem sido bem eficiente, fazendo o mais limpa e discretamente possível esse trabalho sujo. Se não quiseres encarar ainda o caminhãozinho, lute. Lute porque vida é luta. Claro que para os europeus e norte-americanos a coisa é mais folgada, afinal todo o terceirizado mundo trabalha para melhorar suas condições de luta. Olhando assim, de um ponto de vista bucólico hedonista, lutar parece um jeito tão inadequado de viver, um jeito de aproveitar tão pouco esta vida que é tão curta e pouco tempo oferece para fazermos as coisas boas... Então sempre que possamos colocar alguém pra ficar na beirada da trincheira por nós, armado com as armas ou argumentos que lhe emprestamos, nós o fazemos, para que (ora!) possamos sentar sossegadamente, tomar o nosso café e dar a nossa trepadinha sem que aqueles estrondos e ruidos do lado de fora nos paralizem ou explodam a nossa cabeça. Assim é a vida no front. Os países enriquecidos (em geral ilicitamente) estão bem mais longe e lá todas as refeições são feitas no sossego. Lá fazem várias refeições por dia! Têm música, cinema e muita outra diversão. Nós lutamos aqui no front por eles, ainda que pensemos que seja por nós mesmos. Mas não sejamos maniqueístas, eles lá também têm seus problemas, embora eu agora não consiga lembrar quais sejam exatamente. A minha filosofia de soldado é a seguinte: - veja bem, agora que já chegamos até aqui, embora sem saber precisamente como e nem porque, já que temos ganhado e aqui estamos, continuemos. Sigamos cavando trincheiras e lutando todos os dias o dia todo. É o que sabemos fazer e precisamos. Agora(!), nós podemos começar a pensar em para onde é que queremos levar este front.

Comentários