A maldição dos malditos no país dos mal amados

José Castello escreveu um interessante artigo sobre os escritores malditos e logo depois já li dois outros curiosos escritos a propósito desse artigo. Escritos por escritores, claro, que escritores ficam tisgos quando alguém do tamanho do Castello fala sobre as características e a força e o poder e a ruína que causam (principalmente a si mesmos) esses elementos da natureza.

Até eu, que dedogito uma coisinha que outra me animei a palpitar sobre tão relevante assunto para nós, o Grande Povo dos Pensantes, a Nação dos Artistas, sub-grupo dos Escribas Errantes, Tribo dos Eventualmente Acertantes. Nada há de novo sob o Sol, exceto os olhos que o vêem. E é por isto também que guri novo não conhece piada velha. Mas deixemos os prolegômenos pastarem e vamos à nossa tenda, todos juntos, fumar um pouco, tomar aquele chá iniciático e deblablaterar este percuciente assunto. Venham camaradas e irmãos ancestrais, revitalizemos a tradição esquecida nesta conspurcada aldeia global.
Qual é então a maldição que abençoaria com seu negro sobretudo meia dúzia de tiritantes malditos? E por que eu falei lá no título em país dos mal amados? Falei por que cada país tem suas características, inclusive suas peculiares bênçãos e maldições, cada um difere dos demais. Especialmente o Brasil, país dos desigualados. O país dos mal amados é o Brasil, pois ainda que a mãe seja gentil (e um tanto por isto mesmo), o pai não presta. Nunca prestou, nem como marido, nem como pai. Quer dizer, quase sempre nunca.
Logo que casou-se, a Mãe Gentil era muito rica. E por ser gentil e muito rica, arrumou um marido podrão, um devasso que a explora desde então. Se como marido foi e é podre, como pai foi e é doentio e contaminador, criminoso e corruptor. Empestou praticamente toda a sua prole, transmitindo aos mais fortes seus vícios e aos mais fracos todas as suas perdas. Estuprou, matou e deixou morrer. No início, quando sequer morava com a gentil senhora, mãe dos seus filhos, mesmo à distância tomava-lhe o que podia da sua exuberante fortuna para gastar nos bordéis aristocráticos da Europa. Depois, tendo arrefecido um pouco sua febril putanhice, por haver se desentendido com um furioso cafetão francês, refugiou-se por alguns anos nos cálidos braços da doce e gentil senhora sua escrava. Creio mesmo que nesta época foram felizes entre os maltrapilhos filhos.
Mas eis que um proxeneta inglês mata o rufião francês e leva o já quase nativo podre patro poder de volta à devassidão européia e agora ainda mais, à jogatina. O inglês, além do que tira-lhe no jogo, cobra-lhe dívidas havidas com o francês. Conta sempre o nosso pato biltre com a faina de sua esposa e filhos para retirar maravilhas dos próprios tesouros, sempre insuficientes entretanto para satisfazer os insaciáveis comparsas de jogo e orgias desse abominável marido, desse pai castigo. Que estupra, mata e deixa morrer seus filhos, quase todos menos que nada, nunca queridos, amados seria considerada imbecil loucura, nunca cometida por esse charmoso velho safado.
E assim passam-se décadas e anos em séculos, e o pai, se é que pode-se chamá-lo assim, muda de cara e nome muitas vezes, mas sua dívida com os de sua laia - só que mais espertos, aumenta e aumenta. A dívida é de minha mulher e de meus filhos, diz o patro lixo. E mulher e filhos trabalham e trabalham e tiram e colhem e cavam e se perdem e sangram e vituperam-se. E nunca basta. Mas alguns dos filhos que haviam puxado ao pai, imitam-lhe, alguns vão mesmo estar junto dele nos salões de jogos e bordéis internacionais e muitos dos filhos da mãe gentil já querem ser filhos das putas onde pai e pródigos filhos escorrem o leite e o mel tirado de seus outros filhos e irmãos.
Os irmãozinhos mais fracos e abandonados às lavouras de suor, sangue e lágrimas começam a sonhar ser como aqueles irmãos seus que, distantes e afortunados, estão com o pai aquele, que só viram de perto uma ou duas vezes, tão belo e elegante que era difícil crer fosse mesmo pai deles. Eles, essa gente muito mais parecida com a mãe envelhecida e judiada, essa gente com a mesma cor da mãe, tão cedo velha e enrugada, como eles, essa gente seus filhos. O pai, se é que pode-se chamá-lo assim, naqueles seus paramentos de ordem e progresso e prosperidade e esperança prometeu-lhes tantas coisas, fez-lhes imaginar um mundo novo e lindo, com o qual até hoje estão sonhando. Não sabem, os pobres, que desse mundo só verão fotos e filmes. Embora sejam eles que o construam, permanecerão sempre à distância - a distância do medo e do desprezo, que seu pai e seus irmãos, se é que pode-se chamá-los assim...
Bem, dado o contexto histórico, fica fácil compreender que a bênção neste lugar chamado Brasil não seja esperada da mãe. Da mãe se espera só a subsistência e o trabalho e um lugarzinho para o túmulo, como sempre foi. Com o pai é que sempre esteve a promessa, o show, o brilho e o depois. A bênção que todos querem é desse porvir, desse filho da puta que prostituiu sua mulher e seus filhos. Todos querem ser filhos do puto internacional. Ninguém mais quer ser filho da mãe gentil.

Ninguém, não!
Há os malditos.

Jean Scharlau

Comentários