( Foto das marcas batida por Jean Scharlau, alguns minutos depois.)
Aproximadamente 4 e meia da tarde, fria, deste dia 28 de maio, no Centro de Porto Alegre (que assim se proclama). Está movimentada a Rua Riachuelo, em frente ao Colégio das Dores. Uma mulher estaciona o carro, ou prepara-se para sair dele. Dois rapazes chegam nela - não é amizade, nem cantada, sequer pedido de informações - um deles senta ao seu lado sem convite, mostra a arma, o outro apanha a bolsa no banco de trás - tão rápido o prenúncio da tragédia. Não se sabe o que dá na mulher, que sem temer o escuro que inicia no cano começa a gritar minha bolsa, agarra casaco e braço do homem armado (que um rapaz envelhece décadas ao empunhar a morte). O rapaz que pega a bolsa corre. A morte, armada de um rapaz envelhecido, é sacudida e segurada pela mulher que grita minha bolsa, minha bolsa. A tragédia ribomba os tímpanos e cordas, mas a morte não faz tempestade, solta das mãos a mulher, que solta o seu rapaz, sem disparar tiro ou trovão, põe o cano de escuridão no bolso do casaco e o deixa correr livre pela calçada, a alcançar o caminho do que já se mandara.
Tudo isto é em câmera lenta, porque todos os corações ali ultrapassam o tempo. Os rápidos corações todos olham em hiato aquela cena, que só poderiam imaginar rápida, e no entanto... parece um passo de balé suspenso e imóvel. Num ponto da platéia, do outro lado da rua, onde um pedaço do palco faz um ponto cego, há um outro rapaz com o coração também suspenso que é calmamente mirado pela morte, enquanto a mulher a sacode e grita. Neste ponto, que é um tanto cego e não permite ver a ferramenta de aço que quase entra em cena, está este rapaz, que trabalha por ali e não percebe que é atentamente observado pelos olhos vazios. Ele vê o que corre com a bolsa, vê escapar o outro.
Há em muitos homens o ímpeto do herói, e há naquele rapaz toda a confiança no heroísmo, e ele parte para o seu ímpeto, confiante no papel - há uma mocinha que grita, há corações atentos, há o tempo que ficou lerdo, há o bandido que foge, e ele que faz o herói romper o cerco.
Suas pernas são mais rápidas que todas e ele está prestes a saltar sobre o vilão. Nisto a morte volta-se, sorri sua armadilha, contempla a jovem face, ergue levemente o cano escuro dentro do bolso e aperta o seu gatilho. O projeto mortal atravessa o projétil pela barriga do herói que dobra-se e cai ao lado do meio-fio, onde engancha sua vida. A morte, em êxtase com sua obra, deixa-se ficar e os vilões seguem com seu pagamento, já completamente sem utilidade na tragédia. A morte quer fazer o encerramento e ver nos rostos da platéia o assombro do qual ela nunca cansa.
Mas há ainda heroísmo no herói e ele resiste, enquanto sangra na sarjeta. A mocinha vai até ele mas, que triste: sem lágrimas, sem consolo para o homem caído (que um rapaz envelhece demais ao ser ferido pela morte) e grita a mocinha ainda por sua bolsa, vez em quando pede que alguém ajude, que ele feriu-se para ajudá-la, que ela não pode, tem compromisso. Um também não pode. Outro também tem compromisso. Passou toda a possibilidade e nenhum motorista disposto a macular o carro de encarnado desencarnado - perder tempo e trabalho com um trapo de gente (e vai que morre no carro) - nem o motorista do táxi.
Esgotou-se por ali a expectativa heroíca, fugiu da rua a solidariedade, restou só o único ímpeto, o momento superior, que sangra e se contorce para negar à morte o triunfo e o espetáculo. Já por 20 minutos resiste, dobrado no chão sujo, a vida pelo meio-fio. Chega o carro da polícia, piedosamente chamado, os soldados juntam o trapo heróico e afastam-se com ele, que passa a resistir no banco de trás, sob o uivo de sirenes, dobra a esquina e desaparece.
(Os primeiros, os grandes, os verdadeiros reponsáveis pela presença ostensiva, múltipla e livre da morte nas ruas, casas, parques, praças, estradas, hospitais, escolas, obviamente nunca estão presentes - estão em seus palácios de governo, mansões, coberturas, helicópteros, protegidos por estatutos, funcionários de farda e terno, redes de televisão e rádio. Antes do tiro e dos motoristas que negam socorro está o prefeito, estão os juízes e banqueiros, está a governadora Yeda, acabando com tudo que afastaria por muitos anos a morte (ea dor) das pessoas.
Tudo isto é em câmera lenta, porque todos os corações ali ultrapassam o tempo. Os rápidos corações todos olham em hiato aquela cena, que só poderiam imaginar rápida, e no entanto... parece um passo de balé suspenso e imóvel. Num ponto da platéia, do outro lado da rua, onde um pedaço do palco faz um ponto cego, há um outro rapaz com o coração também suspenso que é calmamente mirado pela morte, enquanto a mulher a sacode e grita. Neste ponto, que é um tanto cego e não permite ver a ferramenta de aço que quase entra em cena, está este rapaz, que trabalha por ali e não percebe que é atentamente observado pelos olhos vazios. Ele vê o que corre com a bolsa, vê escapar o outro.
Há em muitos homens o ímpeto do herói, e há naquele rapaz toda a confiança no heroísmo, e ele parte para o seu ímpeto, confiante no papel - há uma mocinha que grita, há corações atentos, há o tempo que ficou lerdo, há o bandido que foge, e ele que faz o herói romper o cerco.
Suas pernas são mais rápidas que todas e ele está prestes a saltar sobre o vilão. Nisto a morte volta-se, sorri sua armadilha, contempla a jovem face, ergue levemente o cano escuro dentro do bolso e aperta o seu gatilho. O projeto mortal atravessa o projétil pela barriga do herói que dobra-se e cai ao lado do meio-fio, onde engancha sua vida. A morte, em êxtase com sua obra, deixa-se ficar e os vilões seguem com seu pagamento, já completamente sem utilidade na tragédia. A morte quer fazer o encerramento e ver nos rostos da platéia o assombro do qual ela nunca cansa.
Mas há ainda heroísmo no herói e ele resiste, enquanto sangra na sarjeta. A mocinha vai até ele mas, que triste: sem lágrimas, sem consolo para o homem caído (que um rapaz envelhece demais ao ser ferido pela morte) e grita a mocinha ainda por sua bolsa, vez em quando pede que alguém ajude, que ele feriu-se para ajudá-la, que ela não pode, tem compromisso. Um também não pode. Outro também tem compromisso. Passou toda a possibilidade e nenhum motorista disposto a macular o carro de encarnado desencarnado - perder tempo e trabalho com um trapo de gente (e vai que morre no carro) - nem o motorista do táxi.
Esgotou-se por ali a expectativa heroíca, fugiu da rua a solidariedade, restou só o único ímpeto, o momento superior, que sangra e se contorce para negar à morte o triunfo e o espetáculo. Já por 20 minutos resiste, dobrado no chão sujo, a vida pelo meio-fio. Chega o carro da polícia, piedosamente chamado, os soldados juntam o trapo heróico e afastam-se com ele, que passa a resistir no banco de trás, sob o uivo de sirenes, dobra a esquina e desaparece.
(Os primeiros, os grandes, os verdadeiros reponsáveis pela presença ostensiva, múltipla e livre da morte nas ruas, casas, parques, praças, estradas, hospitais, escolas, obviamente nunca estão presentes - estão em seus palácios de governo, mansões, coberturas, helicópteros, protegidos por estatutos, funcionários de farda e terno, redes de televisão e rádio. Antes do tiro e dos motoristas que negam socorro está o prefeito, estão os juízes e banqueiros, está a governadora Yeda, acabando com tudo que afastaria por muitos anos a morte (ea dor) das pessoas.
Comentários
Em todos os sentidos da palavra, impressionante.
Baita abraço
Não tenho piedade por alguém assim, coitado do inocente q tentou salvá-la. A futilidade chegou a tanto q elas preferem morrer a entegar o celular D&G, a bolsa VH e afins.
Lamentável.
Por isso tenho andado tão mau humorada e anti social ultimamente.
Cacá