Nota de meu falecimento

Filhas, esposa, mãe, pai, irmã, irmãos, demais amigos e familiares, é com surpresa e pesar que comunico meu falecimento. Fui pego totalmente desprevenido e não pude despedir-me como gostaria. Tive então a possibilidade de enviar este PS (post scripta).

Não sei quando vocês poderão ler, ouvir, ou usar de qualquer outro método inter-além-comunicante para tomar conhecimento deste. Talvez sequer o façam. Como tenho este hábito de escrever, o que primeiro pensei passado o choque e a curiosidade inicial, foi em lhes deixar alguma coisa já na saída, já que não poderei lhes mandar postais. Não sei se levei um décimo de segundo ou um milênio para escrevê-lo, porque aqui neste post mortem a noção de tempo fica totalmente alterada e também a de espaço. É tudo muito diferente. Aqui a única paisagem é uma luz extremamente branca e forte, ainda assim não incômoda, que oscila entretanto, e não consigo saber se ela vai ou vem. A essa luz clarearam-se todas as minhas lembranças e me vieram vocês. Chega de tantas explicações. Há pouco elas pareciam ter demandado meio segundo, em seguida pareceu-me séculos. Estando eu na eternidade, ou a caminho do nada, que me importa o tempo? É o tempo de vocês que importa, afinal vocês ainda existem (suponho) nessa dimensão onde tudo se mede e o ontem define o hoje, que define o amanhã. Olhando isto agora me parece muito engraçado porque aqui na eternidade, no tudo, ou no nada, os três tempos são um único tempo que eu sequer posso chamar assim, porque não há transformação, evolução, mudança. É algo permanente. Estou um pouco atordoado para conseguir expressar as novidades, embora as tenha compreendido imediatamente, como se a vida inteira estivesse esperando e sabendo delas, ainda que não soubesse. Senhora! Às vezes tudo, visto daqui parece tão rápido! Nossas vidas, que tinha-mos como imensas (a minha pelo menos eu tinha), agora vejo como grãos da areia com que um menino brinca na praia. Parecem também a própria brincadeira do menino. Tenho dúvidas se continuo existindo assim sem forma, ou não. Se não continuasse, como estaria agora lhes gravando esta mensagem? Estarei realmente gravando-a? Ou todas estas minhas impressões são os últimos espasmos surrealistas de meu cérebro, o clarão do curto-circuito final que o desliga para que, tendo cumprido ou não a missão, se deteriore em paz? Quero lhes dizer que, vistas daqui, muitas daquelas coisas com as quais estive envolvido durante os anos da minha vida adulta, agora acho totalmente imbecis, mas não vou lhes dizer quais são, porque isto poderia ofender alguém e agora não fazê-lo me é muito importante. Também nada comento porque estou lhes escrevendo para despedir-me e não para orientar sobre o que é ou não correto, visto deste privilegiado ou alucinado ponto. Insiro na minha mensagem um link individualizado a cada um de vocês, onde ao clicar abrir-se-á o meu pessoal pedido de perdão adequado ao fato ofensivo ou à desconsideração que pratiquei e apesar dos quais espero que me seja dada a redenção. À parte estes pedidos individuais a cada um de vocês, que conheço e conviveram comigo, faço também um pedido genérico e abrangente, direcionado aos que ofendi sem dar-me conta e aos que , sabendo que ofendi, não conheço pelo nome ou sequer vi duas vezes, como aquele garoto que veio cheio de vontade me pedir trabalho e eu lhe disse que não tinha nada para ele, suspeitando de que fosse me roubar tempo, dinheiro e executar contra mim alguma judiciária cobrança. Que medos tolos, que nos jogaram no poço de muito mais profundos erros! Preocupei-me com coisas, quando deveria ter me preocupado com as pessoas, além do insólito fato do qual só agora dou-me conta: eu tinha poucas coisas e as pessoas foram tantas... Pude interagir, amar, criar e não o fiz por medo e paralítica babaquice. Agora é que vejo o tamanho desperdício que cometi, as perdas recíprocas, tanto nada! Isto é que agora me assusta: que o nada pelo qual fui optando ao longo da vida, tenha sido o que me organizei para ter sempre e agora seja de fato tudo o que sempre terei. O meu maior castigo será atingir aquilo pelo que lutei. Talvez o perdão de todos me ajude neste momento crítico e eu consiga livrar-me do nada infinito, progressão natural das minhas opções enquanto estive por aí. Não sei se livrará. Estou suspenso e começo a perceber o porquê da vida aqui não se mover: eu nunca aprendi a movê-la. Eu passei por ela, paralizado para o que faz toda a diferença, numa quase confortável cadeira, e me ative quase todo o tempo às coisas insignificantes. Talvez por isto mesmo eu seja aqui uma consciência sem forma, sem o que me sustente, pois a matéria desfez-se e eu estava todo dirigido à matéria. A grande construção não material que tenho são as faltas cometidas por abstinências de amar e distâncias de viver. Talvez por isto eu não veja onde possa chegar, pois não me preparei para este mundo sui generis onde a matéria, forma organizativa temporária da energia permanente, é tão pouco significativa. A organização material aí onde estive e vocês ainda estão, que demandou tanto esforço, foi tão breve afinal e, agora vejo, insignificante. Será que com 'toda' a minha sensibilidade metida a besta poeta, com 'toda' a minha inteligência analítica, 'toda' a minha perspicácia observadora eu realmente não percebi os contidos gritos à minha volta, não notei o horror do silencioso desespero? Bem, confesso novamente, eu notei, eu vi, eu ouvi, eu soube. E de cada vez eu disse: ainda bem que não é comigo. Isto foi tudo o que pensei, isto foi o imenso nada que criei e onde permaneci. E parece-me nitidamente agora que é onde estou, é onde estarei. Humanidade que passaste por minhas mãos, eu te peço perdão! Ouve este meu impronunciável grito. Nota este horror com o qual convivi confortavelmente, porque achei que era o horror dos outros, porque não soube que seria meu, que me esperava aqui, tão próximo. Não soube que o traria comigo, que grito e horror me contaminariam na forma deste silêncio, desta inocuidade suspensa, porque não os combati. Tenho uma vaga esperança de que o teu perdão, junto ao de quem ainda pode perdoar, porque está vivo, possa fazer por mim um pouco do que eu pude fazer e não fiz. Espero que, ao lembrarem que não criei o bem de que tanto precisávamos, digam a si mesmos que importou muito, mas que me perdoam, que notei sim os urros silenciosos dos feridos à porta da frente e a importância de socorrê-los, mas não o fiz por medo e de novo me perdoem. Espero em vocês que ainda podem fazer, enfim, o que eu não fiz. É a minha rala e máxima esperança. Agora estou eu, do lado de fora da porta, prestes a uma eterna existência solitária e vazia, como a curta que levei aí ao lado de vocês. Gostaria tanto de uma sentença barata que me condenasse a ser chicoteado, ter arrancadas as orelhas, o braço, mas não, não é mais assim. Peço a vocês, os únicos que podem, caso recebam esta mensagem, que me perdoem e, querendo evitar isto em que me meti, façam diferente de mim. Peço que livrem-se da babaquice em que me fechei quando estava junto de vocês, perdoando-me e esquecendo-a, para que nunca mais seja assim. Assim seja. Amém.

Jean Scharlau.

Comentários

Saramar disse…
Comecei a ler o post rindo e agora choro, ao escrever este comment.
Porque também sou assim cega e surda. E vc descreveu tão bem a dor da culpa tão nossa, os de mentalidade cristã, uma culpa avassaladora que permanecerá nos atormentando na eternidade, pior que um braço arrancado.