Estou com o Aldo Rebelo nesta: que a demarcação da Reserva Raposa não vá até a fronteira.

Trecho de entrevista de Aldo Rebelo ao jornal O Estado de São Paulo.

Aldo Rebelo: Há populações na região da Reserva Raposa do Sol que vivem ali muito antes de parcela das populações indígenas que atravessaram as fronteiras vindas de guerras tribais do Caribe. Creio que devemos receber e acolher essas populações indígenas juntamente com as populações indígenas que já existiam no Brasil. Mas devemos acolher, também, os brasileiros não-índios que ali chegaram há muitos anos e ali construíram suas vidas. Como é que nós podemos simplesmente, em um processo de demarcação, declarar a extinção desses municípios, que é o caso do município de Normandia, que é de 1904, Pacaraima e mesmo Uiramutã. O de Uiramutã, nós (os parlamentares) conseguimos retirar da lista de extinção em meio a uma negociação difícil. As pessoas tinham ali as suas raízes, a sua infância, suas famílias, sua história. A prefeita de Uiramutã me contou que o avô dela chegou ali em 1908. Como é que nós vamos promover o desterro dessa população? A decisão embute um erro geopolítico. Quem não considera isso um problema grave não está considerando o conjunto do problema. Nós não podemos buscar a solução para o conflito com a exclusão de uma das partes.

O sr. trata índios e não-índios como brasileiros, mas a antropologia pensou a demarcação como modo de preservar o diferente.

Aldo Rebelo: Eu sou tributário da minha formação marxista, da luta pela igualdade. Hoje, há uma grande parcela da esquerda que, depois de capitular diante das dificuldades para transformar o mundo, dedica mais esforço a cultuar e a reforçar a diferença, em vez de buscar a igualdade. Sei que isso tem peso muito grande na formação das opiniões sobre, por exemplo, convivência étnica. Mas a realidade em Roraima não se manifesta assim, eu sei porque vi, percorri toda aquela calha da fronteira, entrei nas áreas indígenas.

O sr. viu o quê?

Aldo: Fui a uma reserva ianomâmi, perto de um pelotão de fronteira do Exército, e visitei uma maloca. Me deparei com umas 50 famílias convivendo dentro de um ambiente fechado, de penúria. Muitos fogos dentro da maloca para as famílias assarem bananas e mandiocas, muita poluição, muita fuligem, um ambiente com incidência muito grande de doenças infecciosas. Até tuberculose. Fui recepcionado por uma moça de uma organização não-governamental, a ONG Urihi. Perguntei por que não se puxava do pelotão água e luz para dentro da comunidade indígena, o que daria mais conforto à população. A moça da ONG disse que não, que isso ia deformar o modo de vida dos índios. Nessa visita, o comandante militar que estava comigo não pôde entrar na área indígena. Um grupo de crianças jogava futebol, e eu joguei um pouco com elas. Comentei com a moça da ONG: "Pelo menos o futebol é um fator de integração, pois todos torcemos pela mesma seleção." A moça me respondeu: "Não. O senhor torce pela seleção brasileira, e os índios torcem para a seleção deles." Nada mais falei e nada mais perguntei.

Isso é sintoma do quê?

Aldo: Vi que havia ali uma incompreensão. Em outro município, perto do Pico da Neblina, as ONGs barraram, com a ajuda do Judiciário, uma construção do Exército. Só depois que a decisão foi revogada na Justiça é que o Exército pôde fazer a obra.

Há mesmo índios que querem conviver com os não-índios?

Aldo: Uma parcela dos antropólogos defende, com razão, que a cosmogonia dos índios, a visão de seu surgimento e da evolução do universo, é incompatível com a convivência com os brancos e seus costumes. O problema em Roraima é que os índios já estão, de certa forma, integrados. As meninas índias de 15, 16 anos não querem viver mais da pesca, da coleta, não querem andar pela floresta com roupas tradicionais. A aspiração é ter uma vida social, vestir-se como se veste um adolescente. O isolamento para essas pessoas é uma ameaça, é a perda da possibilidade dessa convivência. A cosmogonia tem valor para as populações que não tiveram contato com os não-índios.

É alarmista falar da cobiça internacional sobre a Amazônia?

Aldo: As manifestações em favor da submissão da Amazônia a uma espécie de tutela internacional só podem causar repulsa aos brasileiros com um mínimo de dignidade. As declarações e os estudos cobiçando a Amazônia são reais, desde o século 17. Dom Pedro 2º, numa carta à Condessa de Barral, já explicava por que não atendeu ao pedido de um conterrâneo meu, o então deputado Tavares Bastos, para abrir a calha da Amazônia à navegação estrangeira. Se fizesse isso, disse dom Pedro, iríamos ter protetorados na Amazônia iguais ao que foram criados na China pelas potência estrangeiras. Sabia o que estava em jogo.

Qual é o desconforto objetivo que a demarcação contínua da Raposa do Sol provoca no Exército?

Aldo: O desconforto vem das restrições e das campanhas que se fazem dentro e fora do País contra a presença das Forças Armadas nas áreas indígenas.No caso da reserva Raposa do Sol, se a demarcação incluir os 150 quilômetros da terra que corre junto à fronteira da Guiana e da Venezuela, a ação do Exército fica muito dificultada, a fronteira não poderá ser vivificada. A melhor forma de controlar uma região fronteiriça é construir municípios na área, povoá-la, preenchendo-a com a presença de brasileiros índios e não-índios, gente que trabalhe, produza, que gere atividade econômica, política, social e cultural. Leia a entrevista completa n'O Estado de São Paulo.

Em 2004, o relatório da Comissão Externa da Câmara destinada a avaliar, in loco, a situação da demarcação em área contínua da Reserva Raposa, recomenda a exclusão de uma faixa na fronteira. Importantes informações constam do relatório, disponível aqui.

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