Após a feira do Livro, o Armístico

O Homem Que Gostava de Calcular ataca novamente em 19 de novembro de 2003.


Números. Os bons e os justos.
A Velocidade da Feira.

Feira do Livro de Porto Alegre fechou seus estandes e barracas após receber 1 milhão e 800 mil visitantes em 17 dias. Uma média de mais de 100 mil por dia. 470 mil livros deixaram seus balaios e estantes. 27.647 livros por dia. 3.252 livros por hora. Cinqüenta e quatro livros por minuto. Praticamente um livro por segundo continuamente, durante todo o período da Feira.

Pesquisa feita pela Câmara Rio Grandense do Livro ouviu que dos 1 milhão e 800 mil visitantes, a metade mais 90 mil (990 mil pessoas) não têm o costume de freqüentar livrarias. A maior parte dos freqüentadores tem entre 13 e 33 anos.

No ano passado a Feira ultrapassou a velocidade de um livro por segundo. Este ano a iminência da estréia do ESPETÁCULO DO... (do que que era mesmo?) fez com que o pessoal segurasse algunzinho para comprar o ingresso. Mais de 1 milhão 330 mil pessoas guardaram todo o seu dinheiro para o ingresso, não compraram nenhum livro. Em compensação aproveitaram da Feira os shows, palestras, debates, rodas de leituras, oficinas de literatura, exposições de diversos motivos, o cheiro de biblioteca ao ar livre, as comunicações telepáticas, visuais, auditivas, táteis, de estar caminhando na Rua da Praia do Sonho onde brotam os corais do imaginário e rolam conchas, que ao se encostar no ouvido tocam para nós o som das ondas do mar de milhares de anos de zilhões de palavras escritas e pronunciadas ao pé do fogo, ao pé do ouvido, no colo da vida.

Os Bons e Os Justos – segunda parte.

Duzentos (200) pontos em Porto Alegre, DUZENTOS, para troca de armas de brinquedo por gibis. A Campanha de Desarmamento Infantil é uma iniciativa do Conselho Comunitário de Segurança – Conseg (esse consegue!), de Barueri – SP, que em 2001 arrumou uma parceria com o Grupo Abril. A idéia começou quando um sujeito lá, um reles jornaleiro, (eu disse reles jornaleiro?) reles jornaleiro pela ótica dos safados sempre de plantão em suas suítes climatizadas e pela ótica dos trouxas que compram essa sua visão de mundo (só a visão e normalmente pela tv). Um bravo, honrado e respeitável jornaleiro, integrante do Conseg, preocupado com os rumos do seu país, viu um fedelho que trafegava pela calçada à mão de sua mãezinha apontando uma arma de brinquedo para um ônibus e achou que aquilo estava profundamente errado. E resolveu fazer alguma coisa, o biltre. (Eu disse biltre?)

Biltre é do que o xingam todos os interessados no apodrecimento do ser humano pela necrose das relações sociais, todos os falcatruas salteadores e assassinos que vivem da morte, do medo, da desgraça de seus irmãos e irmãs. Vasto e disseminado grupo onde empresários poderosos formam o núcleo e orbitam telejornalistas como moscas no sangue. Perdão. Não era dessa corja que eu queria falar, mas dos bons e dos justos, que felizmente são em maior número, ainda que seu poder seja menor. (Eu disse poder menor?) Poder menor é a idéia que os salafrários empurram, vendem até, diariamente e assim nos mantêm dominados por suas mentiras sugadoras de boa vida. Desculpem. Afundei o pé nessa poça de novo.

Graças à idéia deste valoroso ser humano, que exerceu o seu pequeno poder; graças a muitos outros valiosíssimos que concordando com ele ouviram a idéia e potencializaram a ação com a soma de seus pequenos poderes, contrariando toda a propaganda e expectativas que nos dizem diariamente que nada é possível, que não há remédio, que o mundo está perdido (por nossa causa!) e que valemos muito pouco, amigo. Graças à crença absurda de que "um mais um é muito mais que dois" foi construido um princípio de solução. (Eu disse um princípio de solução?) É, eu disse. E talvez seja isto mesmo. Talvez seja o princípio da solução.

O secretário municipal da Produção, Indústria e Comércio, Adeli Sell, pretende recolher 100 mil (100.000), armas de brinquedo em troca de CEM MIL gibis. Apresento aqui, agora, ao Adeli, uma proposta de continuação e ampliação desta maravilhosa idéia. Os pontos de troca serão distribuidos pela cidade em escolas, bancas de revistas e associações de moradores, para onde dirigir-se-ão as crianças do bairro (principalmente meninos, e uma que outra menina que vai trocar a arminha surrupiada do irmãozinho ou herdada de irmãos mais velhos). Bem, como se sabe, a munição das armas de brinquedo e a dos colt 45 dos mocinhos nunca acaba. Já os gibis, depois de lidos duas vezes ficam com as páginas em branco. Então, para que muitos desses meninos, depois de lerem os gibis, não fiquem achando que fizeram um mau negócio, o que seria mau negócio para a campanha e para nós, a minha proposta é que seja registrado num sítio na internete o telefone, o endereço real ou virtual das crianças que queiram trocar gibis, (e aceitem outros gibis, figurinhas, bolas de gude, pião, vídeo-games, DVDs, CDs, essas coisas). Pois na infância aprendemos a nos comunicar e o funcionamento da sociedade brincando e é preciso muito mais de um gibi para formar um leitor.

Porque na internete? Porque aí estará sempre disponível para consulta, alteração e novas impressões e novos endereços e interessados. Com afixação das listas nos pontos de troca que, alguns deles, poderão continuar a sê-lo depois de encerrada a campanha. Que tal a Câmara Rio Grandense do Livro participar desta? Eu comecei lendo gibi. E olha como gosto de livro com figurinhas agora! Dos 1 milhão e 400 mil que não compraram livro na Feira eu, prolegométrico quilométrico leitor de gibi, tô fora – comprei sete livros. Então, CRL e Adeli, que já foi livreiro e bem o sabe, o leitor de gibi de ontem é o leitor eleitor de hoje. Numa projeção para o futuro, estaremos todos mortos. Mas não precisamos ir tão longe, não é mesmo?

Agora encasquetei por qual pussuca de motivo eu disse que este era o início da solução. Deixem-me pensar... Ah, sim! Este pode ser o início da solução deste problema pesadelo da violência porque esta é a parte exposta da ferida, a parte ainda sadia, as crianças, que, evidentemente, urgentissimamente, temos que preservar da contaminação. É o início da solução.

Ôpa! Mas o que é que gera a violência? É o revólver? Ou é a mão que segura o revólver? Ou é a cabeça que segura a mão que segura o revólver? Ou é a cabeça que segura a cabeça que segura a mão que segura o revólver? Eu voto nesta última. Nós temos que cortar a cabeça que segura as outras cabeças. Nós temos que cortar a cabeça louca, doente, assassina, a cabeça podre. Acho que já são várias cabeças ruins que manipulam cabeças boas. Uma dessas cabeças ruins é a programação de tv com desenhos totalmente contagiosos de violência e imbecilização consumista.

Muito mais que as doenças, muito mais rapidamente, todas as emoções humanas são contagiosas. A alegria, a ira, a volúpia, a tristeza, o medo, todas pegam na hora, e pela tv viram uma epidemia automática. Obviamente as crianças são as mais suscetíveis. Faça a experiência. Brinque com uma criança. Mostre raiva para ela agredindo alguma coisa. Assuste-a. Ela entra em sintonia imediata com as emoções que expressas. As boas e as ruins. Provavelmente porque a criança tem como nós ainda temos, uma imensa necessidade de se comunicar, só que ela não tem o conhecimento das safadezas para se preservar delas, como aliás a maioria de nós continua não tendo. Então o pirulito de uma criança, ou de um adulto infantilizado, é a presa mais fácil que existe.

Nós deveríamos controlar os programas de tv. Eu acho que esta é a função do Estado. Gerir o que é fornecido aos seus membros, aos seus filhos. Não é preciso aplicar censura ou métodos repressivos numa sociedade onde cada um tenha que responder pelo que faz. Basta a responsabilidade. Então se uma emissora de tv insistir em exibir programas com violência não documental, ou seja, pré-violência, ou pró-violência, e violência supra-documental, ela deve arcar com os custos sociais daí advindos. Parcela dos custos dos hospitais, dos presídios, do sistema judiciário, da indenização às famílias e às vítimas. Não creio que uma programação de tv possa ser tão lucrativa que sutente 10% de tudo isto, mas creio que a programação pestilenta da tv que rouba e mata solta por aí é responsável por muito mais que 10% de tudo de ruim que há neste nosso país. E falo aqui só da tv porque estou me referindo a crianças e a adultos infantilizados.

Bem, para encerrar, creio que nós podemos fazer isto, creio que temos a obrigação de fazê-lo. Esse exemplar ser humano, vendedor dos jornais onde vêm impressas (disfarçadas, fotografadas de costas, mas estão lá) as nossas feridas e os que nos ferem, esse pequeno poderoso que inventou de fazer, junto a muitos outros pequenos poderosos, o que estão fazendo, nós também fizemos. Nós elegemos para pôr ordem nesta josta o presidente que tentávamos há 4 eleições. Agora nós é que governamos, bancos, indústrias, terras, águas, televisões – a nação. (Ou não?)

Eu perguntei: OU NÃO?


O HOMEM QUE GOSTAVA DE CALCULAR


O Senado Federal tem um estande na Feira.Oferece à venda livros, folhetos e catálogos publicados pela gráfica do Senado. Eu disse gráfica do Senado? Desculpem. Publicados pelo parque gráfico do Senado.

Ao visitar o estande recebi um misto frio de livro e folheto, um tipo de almanaque publicitário em papel lustroso de 1ª qualidade (há até um nome francês para este tipo de papel) , capa de 21 por 32 cm. (equivalente a de dois livros), 132 páginas, ilustrado com fotos coloridas, p&b e gravuras (fotos do parque gráfico, do prédio, do plenário, de salas, até de cadeiras, luminárias, esculturas, pinturas, tinteiro, verdadeiro catálogo de antiquário, só que é um livro de propaganda do Senado. Há também algumas fotos de povo, para contrabalançar, povo que certamente nunca entrou nos locais tão bem fotografados nas páginas ao lado, isto quando as páginas ao lado não estão em branco, como vinte e quatro delas. Equivalem a 48 pg. de um livro de tamanho normal. Ou quando não estão ali apenas para ostentar o título do capítulo, como 17 delas, equivalente a 34 de livros formato padrão. Das 132 pg., 41 pg., isto é, 31% do grande livro-propaganda, estão lá só para fazer o que maior parte dos senadores faz. Está adequado. Do povo fotografado, provavelmente muitos já morreram de fome, peste e outros crimes).

No momento em que lá estive, havia umas sete pessoas para atender no estande e uma para ser atendida além de mim. Era o horário de maior movimento da Feira, aí pelas 19 h.. Os cinco atendentes que não estavam sendo solicitados confabulavam alegremente a uma mesa estrategicamente colocada em frente à tv 29 polegadas. Um deles falava ao celular como tinha sido a viagem de avião. Os outros comentavam outras trivialidades.

Eu sou um homem que GOSTAVA de calcular, então fiz um pequeno exercício: 1 – passagens de avião vinda e volta a Brasília vezes sete pessoas ; 2 – estadia em Porto Alegre vezes sete pessoas, vezes dezoito dias; 3 – Sete diárias vezes dezoito dias; 4 – despesas de transporte e montagem do estande e dos livros e catálogos como aquele que recebi; 5 – eventualmente mais uma passagem ida e volta a Porto Alegre no meio do período, vezes o número de funcionários que não aguentam tanto tempo longe da família; 6 – outras despesas das quais eu não faço a menor idéia, mas devem estar lá; 7 – ah, e os salários dos funcionários divididos por 30, vezes 18 dias.

Talvez tudo não chegue a R$100.000,00. Mas o que é esta pequena despesa adicional comparada a poderes usufruir da estupenda produção literária e cultural do PARQUE GRÁFICO do Senado Federal? (Os preços dos livros variam de dez a vinte e cinco reais, exceto todos os outros custos anteriores e estes específicos da Feira, pois todos eles estão sendo pagos por nós brasileiros "levemente trouxas").

Faltou no estande uma caixinha de coleta de alimentos para o Fome Zero. Acho que ainda dá tempo de providenciar uma licitação. Deveriam tornar lícito também um luminoso o maior possível em que divulguem: OS LIVROS MAIS CAROS DO MUNDO POR UMA BAGATELA. Caso um estrangeiro os comprasse teria um lucro fabuloso.

É por maravilhas como esta que eu comecei a achar o exercício matemático algo extremamente incômodo e já não gosto mais de praticá-lo, seja no âmbito público, seja no âmbito pessoal, onde é desagradável de outra forma. O cálculo amargou e agora eu só o uso para remédio. Espero que para ti, que estás analisando a questão, esta conta feita seja de alguma utilidade.

120 MIL NA FEIRA, DOMINGO

120.000 (cento e vinte mil) pessoas na Feira do Livro, Domingo. A Rua da Praia transbordava gente até o Gazômetro. Não fui, por isto só informo agora. Fiquei sabendo hoje, enquanto assistia a entrevista do Patrono, Walter Galvani à Rádio Pampa, no aquário montado próximo à Ladeira.
O velho jornalista e escritor,tranqüilo como peixe dentro d'água, animado como lambari em sanga, informava que já tinham sido vendidos 130 mil livros. Tomei o cuidado de verificar aqueles que havia referido dia 1º e vi que ainda há exemplares disponíveis. Os saldos novos a cinco reais estão na barraca em frente à loja da VARIG, na Rua da Praia, Ala Azul, pelo roteiro da Feira. (Os lançamentos obviamente não estão nesta barbada, mas têm significativos 20% de desconto).

O estande da Petrobras, assim como o da Siderúrgica Gerdau tem mesinhas, cadeirinhas e material para as crianças desenharem. Há em outro local, próximo da área infantil uma exposição e ponto de encontro e eventos relacionados a ilustradores(as) de livros. Muitas atividades, barracas e espaços voltados para as crianças e várias turmas de alunos do ensino fundamental visitando. Na ala infantil a Petrobras tem um salão para aulas e jogos literários. Está prospectando novos leitores em águas profundas. Pretendo trazer-lhes mais novidades amanhã.

Nos Caminhos da Feira Parei Triste e Segui Alegre

A Feira do Livro de Porto Alegre começou ontem, dia 31 de outubro, quando à tardinha derramou-se dos nebulosos tanques do céu um torozinho tocado de lado que durou até o meio-dia de hoje. Daí ficou o frio comendo solto os grãos de arrepios nos moínhos dos ventos.Sensação térmica de menos de dez graus. O frio muda as características físico-químicas do ar e nos ocorrem sensações e percepções diferentes ao respirá-lo. Há também algumas reações bio-físico-químicas no nosso corpo alteradas pela temperatura. E não, não é contra a lei. A propósito, porque é que vocês acham que tanta gente vai a Gramado e Canela? Para ver neve?

Apesar destas novidades friholísticas havia pouca gente circulando por ali. Em se tratando da Feira do Livro, quando eu digo pouca gente, quero dizer que se conseguia caminhar quase normalmente, bastando 30% da atenção para não esbarrar em alguém. Consegui chegar sem sofregos esforços e nenhum atropelo até as caixas de saldos e o resultado disto eu conto daqui a pouco. Casais passeavam de braços dados, apreciando o brilho oloroso das lombadas e capas expostas, captando delas os eflúvios mananciais da cultura, dos signos, do quieto alarde de tanto conteúdo suspeitado e presumido, essas coisas.

Eu, particularmente acho que as barraquinhas, coloridas efusivamente por essa praia de objetos que pode-se ir tocando e abrindo com as mãos para procurar neles as curiosas maravilhazinhas, iluminados por lâmpadas incandescentes penduradas e gente atenciosa e contente em volta, são como árvores de Natal, trazem-nos de volta a infância que muitas vezes chegamos a acreditar perdida. Por isto é que muita gente vai à Feira simplesmente para passear. É só para encontrarem-se pequenos e felizes em meio às coisas boas que deveriam estar conosco o ano inteiro, a vida inteira. Deveriam estar com TODOS nós.

Isto ficou tão nítido e claro para mim como uma manhã de sol logo depois da chuva quando eu vi dentro do quiosque da Siderúrgica Gerdau, em vez daqueles balcões altos, recepcionistas plastificadas, quadros e estatísticas idiotas, um grupo de crianças pardas, ocres, marrom cuia, essas cores que muitos não sabem que são cores de gente, e que belas, brincando em computadores, desenhando sobre a mesa com bom papel e canetas, outras usando alguns joguinhos e numa concentração e enlevo de leitores de biblioteca. Ali mesmo eu me perguntei, não a mim na verdade, mas aos que poderiam responder-me: - porquê? Porquê, senhores do Brasil, não pode ser o ano inteiro? Porquê não pode ser a vida inteira, senhores? E para todos nós, senhores do Brasil.

Como vocês devem saber, ninguém me respondeu. Eu então, alegre e triste, fui mexer nos presentes, procurar nas orelhas, numa página aberta ao acaso, numa resenha ou comentário, aqueles que estivessem com o meu nome. Andei por várias caixas de saldos, balcões de barracas, corredores de títulos lombares e encontrei seis pacotes de idéias endereçadas a mim.

Dino Buzzati (sim, primo duplamente distante do Carlo)
- O Deserto dos Tártaros.
Nelson Rodrigues
- O Casamento
Umberto Eco
- O Nome da Rosa
Rubem Fonseca
- Agosto
João Guimarães Rosa
- Sagarana
Estes cinco, novos. A R$5,00 cada um. Isto mesmo, cinco reais. Isto – novos.
E Rabindranath Tagore
- Çaturanga, tradução de Cecília Meireles. Uma edição de 1962, em boas condições. R$3,00 – três reais. Não, não é treze, é três reais mesmo.

Sei que depois de eu publicar esta notícia não será mais possível transitar na Feira, pois milhões afluirão. Pois ainda há mais. Indo à banca que vende revistas, ali perto do MARGS, informar-me se já havia chegado OPASQUIM21, o atendente me disse que ainda não chegara mas deu-me, ãhã, deu-me, GRÁTIS, exemplar de uma semana anterior. Eu já o havia lido, pois leio-o toda semana, mas o darei a alguém que não o leu e está precisando. Obrigado, Ziraldo.

Bom, teria mais coisas a contar, mas vamos deixar para amanhã, que tem mais Feira, além de que agora, se vocês me dão licença, eu tenho uns livros para ler. Nos encontramos lá, então. Aos milhares, como sempre.

Comentários